Escola no pós pandemia – algumas reflexões

26/04/2022
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26/04/2022 Katia Smole

Não era o paraíso a escola que tínhamos e, por isso, os anos de pandemia deveriam ter nos ajudado a separar o joio do trigo, a usar mais nossas aprendizagens e criar caminhos para avançar.

Eu tenho pensando imensamente, e com bastante preocupação, nas questões desafiadoras que todos estamos vendo na volta às aulas presenciais. Temos nos deparado com questões diversas entre estudantes se manifestando por meio de automutilação, de crises coletivas, de comportamentos desajustados, e identificado a impotência dos (alguns/muitos) educadores e gestores frente a esses desafios.

Por certo, todos precisam de ajuda. Por certo ainda nem nos demos conta do que surgirá desses dois ou mais anos de distanciamento social. Para mim, em todas as etapas da escola, só vimos até aqui a ponta do iceberg. Não somente da violência e do desajuste dos comportamentos, mas no que diz respeito às perdas que todos tivemos e o impacto disso em múltiplas faces da vida pessoal e escolar.

Eu quero falar a respeito de algumas delas, e pretendo fazer isso aos poucos, conforme eu mesma entender melhor as dimensões do que está havendo. Trarei aqui a primeira das minhas reflexões que aborda uma dimensão pedagógica associadas ao emocional dos estudantes.

Tenho identificado uma tendência de idealizarmos uma escola que não existia em 2019, e que por isso, não deveria ser nosso parâmetro para as ações na volta presencial.

É comum que em perdas bruscas nos esquecermos de críticas e preocupações que tínhamos, e passarmos a idealizar um momento, uma pessoa, uma vida que deixou de existir.

Isso me parece ocorrer atualmente com a escola que vivemos até março de 2019. Eu sinceramente não via necessidade de desprezá-la completamente, mas também não sonhava em voltar para aquele ponto: aulas frontais, uma escola na mais das vezes sem protagonismo dos estudantes, sem tecnologia, sem uso de propostas desafiantes, altamente excludente, com pouco diálogo com as famílias, com educadores precisando ser apoiados em seu trabalho, com gestores ainda com aprendizagens a fazer para acolher professores e estudantes de diferentes etapas, e sem resultados de aprendizagem efetivos e de qualidade para todos – dados do SAEB de 2019 indicavam que apenas 5% dos estudantes saíram da escola com aprendizagem adequada de matemática.

Enfim, não era o paraíso a escola que tínhamos e, por isso, os anos de pandemia deveriam ter nos ajudado a separar o joio do trigo, a usar mais nossas aprendizagens e criar caminhos para avançar.

O que tenho visto no entanto, é uma escola que tenta retomar de onde parou, que se apoia em práticas antigas, que parece estar voltando de um longo e prazeroso período de férias para todos.

Uma escola que começa fazendo provas diagnósticas para estudantes que estão certos de que não aprenderam nada ou quase nada, para comprovar o óbvio: eles não aprenderam mesmo.

Eu não sou contra a avaliação diagnóstica, ao contrário ela é muito relevante, mas não para as duas primeiras semanas de aula, não antes de trazermos acolhida para ter os estudantes conosco e saberem exatamente porque e para que será feita essa atividade, e como é útil para todos.

Estudantes precisam ser ouvidos. Uma escola que não aproveita a volta às aulas para dialogar com os estudantes a respeito de como eles estudavam no periodo distanciado, como se organizavam para estudar, que dificuldades sentiram, que perdas percebem neles mesmos, como realizavam as provas entre outras coisas . Um diálogo deste tipo, com uma disposição legítima para escutar sem julgar, permitiria repensar o processo e a concepção de avaliação, de modo que a reorganizar as ações, começar com pequenas avaliações em grupo, com consulta e sem consulta, com estudantes preparando anotações para consultarem no momento de prova e se sentirem apoiados, para fazer a transição e volta a momentos individuais de avaliação aos poucos, em combinados que envolvessem os estudantes para entender quando e porque, por vezes, fazer apenas consigo mesmo uma prova, é bom.

Mas ao contrário, se retoma uma prática do século 19 de dar um mês de aula e fazer uma semana de provas. Sem acolhida, e sem saber como reagir, a quem recorrer da aflição de saber que não sabem, os estudantes surtam coletiva ou individualmente na escola.

Observe-se que tensão, ansiedade, medo, repulsa já são sentimentos que perpassam essa avaliação arcaica feita em nossas escola, mas não aproveitamos para repensar isso nem em um momento no qual  uma crise sem precedentes oportuniza a evolução da ciência, e nós não incluímos a educação nesse processo.

Ao olharmos essa situação que se delineia, apesar de todas as dores e desafios que escolas e educadores tenham, nunca podemos deixar de pensar que sim, todos precisamos de apoio, mas os estudantes estão gritando por socorro e os adultos precisam acolher esse grito antes que toda a sociedade, incluindo a escola, passe a responsabiliza-los por serem deseducados, ou rebeldes, ou ainda resistentes a aprender, achando que o único problema é que acabou a “mamata” de fazer provas com amigos como eu já tenho ouvido. A questão é profunda demais para ser tratada com uma fala tão pejorativa, tão insensível.

A tarefa de acolhida é de muitos, exige esforço coletivo, mas ela sem dúvida passa pela escola que é o local de profissionais da ciência da educação, com maiores condições de pensarem juntos como dar a acolhida que eles precisam agora. Vamos olhá-los e, dizer com os olhos, estamos aqui. Vocês contam conosco.

E a aprendizagem? Ela virá também como processo de acolher as necessidades que eles têm, mas não andará sem compreensão, sem afeto.

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Katia Smole

Mentora Core. Diretora do Instituto Reúna, fundadora do Grupo Mathema, Presidente da CEB no Conselho Estadual de Educação de São Paulo.