Brasil tem dívida com Paulo Freire

21/09/2021
21/09/2021 Core

Ontem, 19 de Setembro de 2021, o mundo comemorou o centenário de Paulo Freire, um dos maiores filósofos e educadores da história. Sua “Pedagogia do oprimido” é nada menos que o terceiro livro mais citado da história das ciências sociais — na frente de obras de Freud e Foucault. Freire é o brasileiro mais traduzido (40 idiomas) e o mais premiado (35 títulos de doutor honoris causa) da nossa história recente.

Freire propôs algo bastante concreto: a educação deve levar em conta a vida, o interesse, a realidade e a cultura dos alunos. Para além de sua filosofia educacional, seu método de alfabetização é também absolutamente empírico: em 1963, conseguiu alfabetizar 300 adultos em apenas 40 horas na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, sob o olhar de observadores nacionais e internacionais.

Mas por que o olhar freireano para a aprendizagem continua tão inovador e necessário hoje quanto nos anos 1960? Paulo Freire mostrou que uma educação humanista incentiva os alunos a perceberem criticamente o mundo e a desenvolver um olhar solidário entre indivíduos. A história, diz Freire, é o lugar de possibilidades, não de inevitabilidades. Pensamento crítico, para ele, não é simplesmente “criticar o mundo”, é arregaçar as mangas e refazê-lo. E isso é mais do que nunca necessário num planeta que precisa, por exemplo, substituir combustíveis fósseis, vencer uma pandemia e resolver desafios sociais e econômicos que muitas vezes parecem insuperáveis.

O Brasil, entretanto, tem décadas de faltas cometidas contra Freire. Em 1964, no auge de seus esforços de alfabetização de jovens e adultos, o trabalho de Freire incomodou os generais, que o tacharam de subversivo. Freire foi preso e exilado pelo regime militar e viveu 16 anos fora de sua terra natal. Seu pecado? Querer alfabetizar os brasileiros mais humildes, e entender que ensinar um indivíduo a ler é dar-lhe a palavra de maneira integral; é dar voz a quem vive numa cultura de silêncio e aceitação.

Atitude semelhante se viu em 1975, quando Freire recebeu o maior prêmio da Unesco por seus esforços de alfabetização: durante a cerimônia, no Irã, os representantes do governo militar do Brasil deixaram o auditório para não presenciar a premiação do professor “subversivo”.

Desde os últimos meses de 2018, o atual governo federal iniciou uma cruzada de desinformação contra Paulo Freire. Como consequência, muitos brasileiros hoje atribuem a Freire toda e cada eventual mazela da educação brasileira, sem jamais terem lido qualquer texto dele. Na verdade, a educação freireana jamais foi aplicada no Brasil em larga escala. O que fazemos, infelizmente, é ainda a chamada educação “bancária”, de depósito automático de conhecimento sem respeitar os saberes do educando.

É preciso compensar a dívida histórica que o Brasil tem com Paulo Freire. Mais do que nunca, é hora de reler e praticar a filosofia de Freire na escola brasileira, garantindo que o patrono de nossa educação não seja expurgado, mas celebrado intensamente. Mas Freire nunca quis ser um fóssil ou um ídolo: queria ser reinventado, questionado, recriado. E é isso que devemos começar a fazer, assim, freireanamente.

Que venham mais cem anos, Paulo.

Em tempo: a Universidade Columbia (EUA) lançou o Freire Initiative, programa multidisciplinar que visa a celebrar, estudar e ampliar a obra de Paulo Freire. Estão previstos cursos, seminários e bolsas de estudo. Saiba mais aqui.

 

*Fabio Campos (Universidade de Nova York), Paulo Blikstein (Universidade Columbia), Lívia Macedo (Universidade Columbia), Cassia Fernandez (Universidade de São Paulo), Raquel Coelho (Universidade de Stanford) e Tatiana Hochgreb-Hägele (Universidade de Stanford) e são educadores e pesquisadores brasileiros e fazem parte do grupo Ciências da Aprendizagem Brasil, uma iniciativa do Transformative Learning Technologies Lab da Universidade Columbia

Original publicado no jornal Folha de São Paulo