Desde o ano passado, celebrações em torno do Centenário de Paulo Freire estão sendo realizadas em diferentes partes do mundo.
Alguns poderiam perguntar: por que celebrar o centenário de Paulo Freire?
A pergunta procede, pois ele não gostava de homenagens. Costumava dizer, quando recebia homenagens, e foram muitas, que as recebia porque tinha certeza de que elas só aconteciam em função das causas que defendia.
Ele deixou marcas profundas em muitas pessoas e profissionais de diferentes áreas. Não apenas pelas suas ideias, mas, sobretudo, pelo seu compromisso ético-político.
Não deixou discípulos como seguidores de ideias. Deixou mais do que isso. Deixou um espírito. “Para me seguir não devem me seguir”, dizia ele.
O pensamento freiriano é um pensamento rebelde, insurgente, onde não falta a indignação e a esperança, a crítica e a proposta. Não somos repetidores de Freire. Não se trata de repetir Freire. Trata-se de reinventá-lo.
Paulo Freire confessou, certa vez, que se considerava como um “menino conectivo”. Essa característica não era apenas pessoal. Era também epistemológica e política.
A concepção freiriana da conectividade está estampada na epígrafe do seu livro mais conhecido, Pedagogia do oprimido: “aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam”.
Pedagogia do oprimido teve grande repercussão porque expressava o que muita gente já tinha em mente em seus sonhos e utopias, um mundo de iguais e diferentes, “um mundo em que seja menos difícil amar”, como afirma ele no final desse livro.
Pedagogia do oprimido ressoou nos mais diversos ambientes, seja na academia, seja na sociedade, sindicatos, igrejas, ongs, movimentos sociais e populares. Sua filosofia educacional cruzou as fronteiras das disciplinas, das ciências e das artes, para além da América Latina, criando raízes nos mais variados solos.
Para nós, do Instituto Paulo Freire, ele continua sendo a grande referência de uma educação como prática da liberdade e de uma educação popular.
Muitas das mensagens recebidas no Instituto Paulo Freire, em São Paulo, logo depois do dia 2 de maio de 1997, data de seu falecimento, dizem textualmente:
– “Minha vida não seria a mesma se eu não tivesse lido a obra de Paulo Freire”.
– “O que ele escreveu ficará no meu coração e na minha mente“.
Essas mensagens revelaram o impacto na vida de tantas pessoas de muitas partes do mundo.
Não há dúvida de que Paulo Freire deu uma grande contribuição à educação para a justiça social e à concepção dialética da educação. A pedagogia autoritária e seus teóricos combatem suas ideias justamente pelo seu caráter emancipatório e dialético.
Seja como for, aceitemos ou não as suas contribuições pedagógicas, ele constitui um marco decisivo na história do pensamento pedagógico mundial.
As ideias de Paulo Freire continuam válidas não só porque precisamos ainda de mais democracia, mais cidadania e de mais justiça social, mas, porque a escola e os sistemas educacionais encontram-se, hoje, frente a novos e grandes desafios.
Paulo Freire tem muito a contribuir para a reinvenção da educação atual. Essa reinvenção da educação passa pela recuperação dos educadores como agentes e sujeitos do processo de ensino-aprendizagem e da prática educativa. Essa reinvenção passa pela “educação como prática da liberdade”, como sustentava Freire, para “brigar por mais justiça”.
A reinvenção da educação só pode ser obra de um esforço coletivo, colaborativo, plural, não sectário, pensando numa transição gradual para outras formas de conceber os sistemas educacionais, seu planejamento, sua gestão e monitoramento, seus parâmetros curriculares, se quisermos dar uma contribuição significativa para a construção de novas políticas públicas de educação.
Os educadores e educadoras podem e devem ser os principais protagonistas dessa reinvenção. A mudança precisa partir do vivido, do experimentado, do que está em processo, da “reflexão crítica sobre a prática”, como diz Paulo Freire.
De nada adianta instrumentalizar melhor as pessoas para buscarem ser melhores do que as outras. A vida, para ser plena, precisa ser vivida na plenitude do saber, do ser, do sentir. Precisamos nos formar para a sensibilidade, para a emoção e a imaginação, para além da ciência e do conhecimento.
Paulo Freire defendia o saber científico sem desprezar a validade do saber popular, do saber primeiro. Dizia que não podemos mudar a história sem conhecimentos, mas que tínhamos que educar o conhecimento para colocá-lo a serviço da transformação social. Educar o conhecimento pelo entendimento da politicidade do conhecimento; entender o sentido histórico e político do conhecimento.
A utopia é uma categoria central do pensamento de Paulo Freire. Por isso, ele se opôs diametralmente à educação neoliberal, pois o neoliberalismo “recusa o sonho e a utopia”, como afirma na sua Pedagogia da autonomia. O neoliberalismo não só recusa o sonho e a utopia. Ele também recusa o saber dos docentes, reduzindo-os a meros repassadores de informações como máquinas de reprodução social, excluindo-os de qualquer participação no debate sobre os fins da educação.
A educação neoliberal não se pergunta sobre as finalidades da educação investindo toda a energia nos meios e, particularmente, na eficácia e na rentabilidade, quantificadas milimetricamente pela avaliação. Sabemos avaliar com perfeição, sem nos perguntar sobre o que estamos avaliando.
Para essa concepção de educação, os docentes não têm conhecimento científico; seu saber é inútil. Por isso, não precisam ser consultados. Eles só precisam conhecer receitas sem se perguntar porque. Eles só servem para aplicar novas tecnologias: a sala de aula perde sua centralidade e a relação professor-aluno – ou melhor, “dodiscente” (docência mais discência) – entra em declínio em favor da relação aluno-computador.
Creio que o conceito de dodiscência está em sintonia com a autodefinição de Paulo Freire como um “menino conectivo”. Conectividade e dodiscência fazem parte de uma mesma visão de mundo. Ele expressa a indissociabilidade do ensinar e do aprender como processos “indicotomizáveis”, na expressão de Paulo Freire. Ele rompe com a tradição elitista da docência como uma relação de mando e subordinação. Um neologismo que se destaca na história das ideias pedagógicas.
Portanto, há razões para celebrar o centenário de Paulo Freire.
E como nossa celebração não é uma pura homenagem, é um compromisso com uma causa, nossa proposta de celebração do centenário de Paulo Freire é, também, um convite para um compromisso com uma causa.
Nossas celebrações têm um sentido estruturante, um sentido propositivo e prospectivo.
Celebrar não é esperar que o amanhã chegue a nós. É fazer, desde já, o amanhã que desejamos ver realizado. Não é pura espera. É esperançar.
Entendemos o centenário de Paulo Freire como um espaço-tempo de articulações, como um processo formativo e de mobilização com vistas à transformação da realidade.
A práxis de Paulo Freire opôs-se ao neoliberalismo e hoje, ao celebrar o centenário, estamos também nos contrapondo à ofensiva ideológica neoconservadora e fortalecendo o pensamento crítico freiriano, promovendo ações e projetos alternativos à mercantilização da educação.
Para nós, educadores e educadoras, celebrar Paulo Freire é lutar para democratizar a escola e educar para e pela cidadania. Temos certeza que direitos são conquistas. Não são uma doação. Trata-se, portanto, de lutar por uma escola que forme o povo soberano, o povo que pode mudar o rumo da história, uma escola transformadora, uma escola que emancipa.
Uma escola de luta e de esperança.
Paulo dizia que essa escola, a escola cidadã, era uma escola de companheiro, de comunidade que vive a experiência tensa da democracia.
Por isso, saudamos com muito entusiamo essas celebrações em torno do Centenário de Freire. O que se destaca nelas é a defesa da escola pública, do direito à educação e a luta contra o neoliberalismo e à mercantilização da educação.
Em tempos como o que estamos vivendo hoje, de retrocessos sociais e políticos e de um neoconservadorismo crescente, precisamos de referenciais como os de Paulo Freire, para nos ajudar a encontrar o melhor caminho de resistência e luta nessa travessia.
Celebrar é lutar. Acreditar no sonho e ir à luta.
Nossa resposta a esses tempos obscuros é celebrar Freire. Afirmar com orgulho: PAULO FREIRE, SIM!
Fonte: Trama al sur