Vinte e seis anos após O Erro de Descartes, António Damásio tem um novo livro, em que nega a frase do evangelho “no início foi o verbo”. Sobre a pandemia, alerta: “O grande problema da velocidade a que se pode criar uma vacina é ter a garantia de que não se transformará num problema ainda maior.”
O mais recente trabalho científico e filosófico de António Damásio começa com uma declaração de interesses: desta vez escreve um livro em que as ideias que vai entregar ao leitor são o alvo e não quer rodeios que o distraiam. Ou seja, a espessura do volume é menor, o foco nas ideias mais apertado e só recorre a ilustrações quatro vezes, quando as explicações o exigem. Há outra diferença, a de uma toada poética percorrer muito de Sentir & Saber – A Caminho da Consciência. São 46 capítulos breves, Um Epílogo – não o Epílogo – e um prólogo, em que confessa o fato de existir em si alguma frustração com a recepção dos conhecimentos: “Não era uma frustração mortal nem me preocupava muito, mas desagradava-me quando perguntava a um leitor por uma certa ideia e verificava que ele, tendo lido imensas páginas, não tinha apreendido aquela que eu queria passar.” De modo que Sentir & Saber surge num livro mais pequeno: “Está muito na moda as pessoas quererem livros pequenos porque têm pouco tempo para ler, tanto assim que achei ser uma ótima oportunidade para fazer um livro poético sobre aquilo que me interessa. De modo a que o leitor possa chegar ao fim de cada uma das 46 peças e ter espaços em branco que o levem a parar e a sentir-se obrigado a refletir um pouco sobre o que se passou.”
A palavra “poético” vai aparecendo na entrevista e é impossível não questionar essa intencionalidade que a leitura já mostrara através de uma sensação frequente, a de que o pensamento científico resvalava para um nível poético. Foi intencional? “Sim. Gosto muito de poesia e sinto uma inveja enorme dos meus amigos poetas que podem escrever meia página e dizer coisas muito importantes. Há aí algo que me interessa enquanto estilo, mesmo que duvide de que vá repetir este registo no próximo livro. De certo, voltarei às centenas de páginas e perderei este aspeto mais económico”, afirma. “Aliás, é mais fácil escrever muito do que pouco, porque o trabalho de redução é extremamente difícil”, acrescenta, rematando com a experiência de um colega que dizia:”Não tenho tempo para escrever tão curto.”
Se António Damásio considera o livro poético, pergunta-se porque coloca lá para o fim alguns diagramas, como é o caso das estruturas principais do tronco cerebral. Tudo o que era simples até aí é destruído com quatro imagens… “É uma decisão que é preciso tomar a certa altura porque uma coisa é explicar sem diagramas, equações ou descrições químicas, outra coisa é explicar com um pouco mais de pormenor para que seja possível aos leitores compreender que não é só uma questão de palavras e de suposições sobre o que se passa dentro do cérebro; é importante que compreendam o conhecimento sobre a estrutura anatômica e como tudo se inter-relaciona e funciona. Podemos ser simpáticos e tentar simplificar quando se fala das grandes ideias, no entanto, ao querer mostrar que não são só hipóteses mas realidades que têm que ver com anatomia, fisiologia, química e física, nessa altura precisamos mesmo de diagramas. Afinal, os livros que eu escrevo não são de divulgação científica.”
Se lhe perguntar qual é o legado de um trabalho de décadas, este livro é a resposta?
Existem vários aspectos no meu trabalho: o científico e o de pensamento, portanto dizer que este livro é o legado seria um exagero. É, muito especificamente, uma maneira de tratar assuntos que me apaixonam – problemas científicos e filosóficos – e uma tentativa de os expor sob uma forma mais clara. Por boa sorte, enquanto fui construindo o livro também tive a oportunidade de descobrir que algumas das soluções que tenho apresentado para certos problemas são, de fato, soluções novas e sob certos aspectos – digo eu e vários dos meus colegas – muito convincentes. Então, posso dizer que é ao mesmo tempo uma tentativa de pôr a claro e de uma forma mais direta temas importantes do meu trabalho e deixar claro que existem questões em bom caminho de serem resolvidas. Muito especificamente, no que respeita à consciência e aos sentimentos.
Quanto ao legado…
… não gosto de responder a perguntas como essa porque nos fazem parecer pomposos e muito conscientes daquilo que se está a fazer, o que me parece uma má atitude. No entanto, objetivamente, julgo que tenho feito uma contribuição no que respeita ao papel do corpo relativamente ao cérebro na construção daquilo que é a nossa mente. E esse é um tema importante, no qual tenho vindo a fazer contribuições desde o tempo de O Erro de Descartes – um livro sobre o qual já passam 26 anos – e que trazem para o campo da ciência a importância daquilo que é o corpo e, evidentemente, da vida dentro desse corpo. Aliás, com o tremendo sucesso do que hoje se chama a neurociência, a preocupação dominante tem sido o cérebro, propriamente dito. Questiono se o cérebro é capaz de resolver todos os problemas que existem em torno do que é a mente humana. Para perceber o que é a mente, necessita-se de entender o que se passa com o cérebro, mas, muito antes disso, compreender o que se passa com o corpo, vivo e inteligente. Diria que esta é a resposta completa à pergunta.
Quando coloca a relação entre o corpo e o sistema nervoso, nomeadamente no fato de o primeiro conter o segundo dentro de si, como fica essa hipótese quando no futuro partes do corpo humano forem amplamente substituídas por próteses num cenário da inteligência artificial?
É muito improvável que uma pessoa seja substituída em mais do que uma pequena percentagem do seu corpo com próteses.
É possível ter uma substituição do coração, dos rins, por exemplo, ou seja, estamos no caminho para haver uma substituição de órgãos fundamentais, contudo as próteses terão de fazer o mesmo serviço que os órgãos naturais fazem. Mas há outra coisa, é que mesmo que se pudessem substituir três ou quatro deles, o que seria altamente exagerado, terão de funcionar dentro do contexto geral daquilo que é a vida com um corpo, que não é só a propósito de órgãos mas também com o que se passa com o nosso metabolismo. Há certos órgãos extremamente importantes para o que é a nossa pessoa sentimental – no sentido restrito de sentimento – e existe um que é insubstituível: a pele. Que é uma víscera que cobre todo o corpo e quem perder grande parte dela não sobrevive. Então, mesmo no cenário mais “moderno” do que será uma medicina do futuro, com uma substituição escandalosamente complexa de órgãos, haveria nesse fenômeno extremo sempre um enorme poder do que é o corpo natural com a sua estrutura básica. Não estou preocupado que esse sucesso das próteses vá transformar pessoas com sentimentos e consciência em robôs.
Refere frequentemente neste livro o conceito “detectar”. Acha que essa capacidade pode ser perdida com a medicina do futuro?
Essa capacidade de detectar corresponde ao inglês detect, mas a palavra que nos dá mais amplitude é sensing, porque tem que ver com sensores – mas não com sentimentos. Uma coisa é ter sensing outra é ter feeling. No que respeita a “detectar”, que é um aspeto fundamental da vida, à medida que caminhamos para uma robótica mais complexa irá ser necessário que os robôs tenham não só uma capacidade de “detectar”, que alguns já podem ter, mas também de sentir, no sentido mais biológico do termo. No último capítulo explico o que vai de fato acontecer, que iremos ter robôs mais como nós desde que se lhes introduza a vulnerabilidade.
Não é um contrassenso?
Pode parecer paradoxal, porque quando se pensa na inteligência artificial o que vem à ideia é que são criaturas absolutamente invulneráveis, feitas de aço e de plástico em vez da nossa pobre carne humana. À primeira vista pode parecer uma asneira introduzir vulnerabilidade numa coisa que é robusta, no entanto, só a introduzindo teremos a possibilidade de fazer qualquer coisa de mais rico em matéria das reações que esse “organismo” poderá tomar.
Defende a sua dama ao considerar errados avanços da inteligência artificial desprovidos de sentimentos e sugere que se deve corrigir e instalar nos robôs o detetor corporal. Esse desejo não é ficção científica?
Aquilo que as pessoas que inventaram os robôs quiseram ou querem é uma coisa, o que o mercado quer é aquilo que for. Podem não gostar de sentimentos ou de emoções, mas pouco importa se se provar que robôs com sentimentos são mais eficientes e se se gosta ou não. O que determina o rumo da nossa vida é o que os mercados querem e, se funcionar, eles vão querer. Se não, as pessoas vão esquecer-se da ideia.
Já que falamos de máquinas, vamos à humana. Como é conviver com as suas perguntas científicas em confronto com as que a humanidade faz desde sempre – de onde vimos, para onde vamos -, porque elas continuam a existir neste Sentir & Saber?
Absolutamente, pois o livro é exatamente sobre essas perguntas clássicas. O que quero é mostrar, tanto quanto for possível, que as respostas que hoje estamos a dar podem ser diferentes mas o mesmo não se passa com as perguntas. Desde que temos mentes conscientes – uma mente consciente é a que tem sentimentos e se estes não existirem, provavelmente, não haveria consciência -, é importante termos a ideia de como o corpo está a funcionar e essa é a porta de entrada para as grandes perguntas humanas, aquelas que são as de sempre e desde que uma pessoa se lembra de que a vida tinha uma problemática extremamente complexa. Mas só desde que existem sistemas nervosos é que foi possível transformar essa problemática em consciente. É um quase paradoxo que, ao pensarmos no tempo da vida humana no planeta, apenas no último quarto desses quatro bilhões de anos se deu a entrada dentro do sistema nervoso e que só nos últimos 200 milhões de anos é que, quando muito, há qualquer coisa que venha a parecer-se com aquilo que é o nosso sistema nervoso. A conclusão é que grande parte do tempo dos seres vivos sobre o nosso planeta tem sido vivida de uma forma inconsciente.
O que quer dizer?
Que havia vida complexa e evolução, mas ninguém sabia que existia. É espantoso pensar que isto só começou a ser conhecido no momento em que começámos a ter consciência do que estava a acontecer no nosso corpo e com a nossa vida. Depois, à medida que os sistemas nervosos evoluíram, conseguiu-se ter um conhecimento através da observação e das ciências do que é a vida em seres vivos como nós. É uma história muito complexa, mas uma vez que chegámos à idade da consciência e da razão, foi possível fazer as perguntas e as pessoas puderam olhar umas para as outras, olhar para a história delas próprias, e então fazer essas interrogações e questionar o sentido da existência.
Alerta para o fato de uma teoria que ignore o sistema nervoso para justificar a mente e a consciência estar condenada ao fracasso, mas, diz, uma teoria que dependa exclusivamente do sistema nervoso está também condenada a falhar. Enquanto cientista, como é viver num equilíbrio investigatório?
Sem dúvida que essa é uma das ideias principais deste livro – como já era no anterior,
A Estranha Ordem das Coisas -, a de que a vida começa antes do cérebro. Neste momento é muito comum que estejamos constantemente a ser bombardeados com novos fatos e ideias sobre o cérebro, daí que as pessoas acabem por se convencer de que aquilo que é a sua inteligência vem do cérebro. Isso é um disparate e é completamente errado dizer que a inteligência vem do cérebro. A nossa inteligência é complementada pelo cérebro! Porque a nossa inteligência começou há bilhões de anos com a própria vida e tem vindo a desenvolver-se com processos que antecedem o aparecimento dos sistemas nervosos. Em inglês, tenho no livro uma frase que é assim: “Brains are an after thought of nature”, traduzindo: “Os cérebros são o último pensamento da natureza.” O que quer dizer que a natureza pode funcionar perfeitamente sem cérebros, contudo o que os cérebros lhe trouxeram foi um melhor funcionamento. Portanto, a razão por que temos cérebros – e mente e consciência e raciocínio – é porque nos ajuda a viver melhor. Ajuda a vida e permite a vida com a grande complexidade como é a dos seres humanos. Não esquecer que, antes de existir essa grande complexidade, já havia vida, inteligência e funcionamento.
Daí que dê como título ao primeiro capítulo “No início não foi o verbo”, contrariando a abertura do Evangelho de João?
Claro, só podia ser assim. A frase clássica é bíblica e tem que ver com a maneira como os seres humanos de há alguns milhares de anos descrevem a sua própria situação. Evidentemente, eles confrontavam-se com a sua realidade e a palavra, como forma de descrever fenômenos diversos, era o modo principal. Hoje, sabemos que temos milhões de anos de evolução, que começaram e mantiveram-se com a inteligência – mas não havia nem cérebro, nem mente, nem capacidade verbal; portanto, é muito importante afirmar que no início não foi o verbo. Trata-se de uma leitura perfeitamente aceitável, mas devemos entendê-la como uma leitura parcial, que é a sua realidade.
Choca o leitor, e vamos à página 3, quando compara o ser humano aos seres unicelulares ; que nos diferenciamos por ter uma inteligência baseada no raciocínio e na criatividade mas somos iguais no aspeto de uma competência não explícita como acontece com as bactérias. Somos assim tão iguais?
Somos iguais e não somos. Nessa característica somos, mas depois existem todas as outras que vieram juntar-se a essa e que nos dão uma capacidade extraordinária. Não podemos fazer a comparação entre o ser humano e uma bactéria, pois um tem inteligência, capacidade de criação e uma autonomia completamente diferentes, mas ao mesmo tempo devemos reconhecer que a humilde bactéria tem vida, tem de a regular e confronta-se com o problema de se alimentar, de se defender do excesso de frio ou de calor… Uma vez que há vida, existe uma complexidade e uma novidade extraordinárias e é isso que se encontra na bactéria e em nós. Não é que os seres humanos devam ficar ofendidos por serem comparados a uma bactéria, é um pouco ao contrário, pois devemos reconhecer que aquilo que a bactéria tem é um aspeto fundamental para o que nós somos e deve ser respeitada se não quisermos que dê cabo de nós. Seria bom que pudéssemos fazer isso com os vírus, o que não é neste momento de todo possível como se vê com a pandemia com que nos confrontamos.
Afirma que “os vírus continuam a ser uma das principais fontes de humilhação na ciência e na medicina”. A rapidez com que foram criadas várias vacinas determina o fim próximo dessa humilhação ou há situações que o homem não poderá ultrapassar?
Não é o fim da humilhação de todo, a vacina vai ser uma resposta temporária, muito boa porque não temos maneira de sair desta situação de outra forma. Aliás, existem duas maneiras de sair: uma, se todas as pessoas ficarem imunes por terem vírus – o que provocaria uma mortandade horrível devido a uma boa percentagem de pessoas que têm complicações graves poderem morrer; a segunda, as vacinas – que não resolvem o problema mas vão melhorá-lo de imediato. Há neste caso um enorme progresso, mas falta verificar a eficácia das vacinas.
Desconfia das que estão a ser anunciadas?
Há ótimas indicações de que pelo menos duas, talvez três, possam funcionar muito bem e sem efeitos secundários graves. Apesar de ser a única maneira de sairmos deste problema rapidamente, não será tão breve assim e levará pelo menos seis a doze meses.
Surpreende-o este “festival” de vacinas?
Não fico surpreendido de todo. Quando se compara com a vacina da poliomielite, em que as técnicas eram extremamente rudimentares, é espantoso que se tenha conseguido sucesso e erradicado a doença. Nas últimas dezenas de anos, as técnicas têm vindo sempre a desenvolver-se e temos lidado com epidemias – como a do HIV- que provocaram a aceleração no desenvolvimento das vacinas. A criação de uma vacina hoje é um problema resolvido do ponto de vista intelectual. Sabe-se o que é preciso fazer e que caminhos percorrer, o grande problema da velocidade a que se pode criar uma vacina é ter a garantia de que não se transformará num problema ainda maior.
Receou morrer durante os últimos meses?
Não, de todo, e esse foi um dos aspectos mais curiosos destes tempos, Claro que se receia a morte mas há formas de nos precavermos contra ela, embora de forma nada científica, porque tomam-se todos os cuidados e nada garante que não se seja infectado. O confronto com a morte é real e torna-se ainda mais quando se vive um momento social muito complexo, em que há conflitos de toda a espécie e uma relativa incapacidade em os resolver. É preciso sensatez.
Entrevista dada a João Céu e Silva. do jornal português Diário de Notícias, em 5 de novembro de 2020
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