As lições de Portugal

22/04/2020
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22/04/2020 Guilherme Romano

Em poucos dias, em plena quarentena, a Revolução dos Cravos completa seus quarenta e seis anos. Nesse espaço geométrico, onde dois quadrados formam um só retângulo como confirma a ciência, quatro lições chegam de Portugal.

A primeira delas é o reforço de que uma República não se faz de fuzis ou mesmo de vagas patentes. Ela, por outro lado, como diz mais uma vez a ciência, se faz a partir da coisa pública, da coisa do povo somada, claro, à democracia, à união, à coesão dos espectros políticos e, por que não, de cravos

Na noite da véspera do dia 25 de abril de 1974, às 22h55, quando a canção “E depois do Adeus” tocou os corações lisboetas, dava-se o primeiro sinal para a derrocada da falácia autoritária de Marcelo Caetano, aprendiz de Salazar. O segundo sinal, uma outra canção,  “Grândola, Vila Morena”, soou às 0h20 colocando em marcha a Revolução dos Cravos.

Verdade seja dita,  essa romântica revolução partiu do seio de militares,  de legítimos capitães, a segunda lição – que primavam pela liberdade, pela democracia e por uma verdadeira república na qual o poder estaria, de fato, nas mãos do povo.

Um fuzil e, no seu íntimo, um cravo vermelho, não impediram a perda de vidas. Sendo específico, quatro vidas se perderam no episódio. Mesmo assim, o levante seguiu seu destino e, a antes temida PIDE com as mãos sujas de sangue, sucumbiu assim como caiu Marcelo Caetano, o ultrajante ditador.

Portugal, naquele instante, despertava de um sono profundo e com isso dava adeus à utopia das colônias ultramarinas.  Se desfazia de vez da camisa de força do fascismo inquisidor do Estado Novo que só sobrevivia das glórias de um mundo distante, perdido no passado longínquo das descobertas.

A efetivação real dessa revolução veio se mostrar no dia seguinte com a implementação de uma nova ordem política sob a égide dos três Ds: Democratizar, Descolonizar e Desenvolver. Logo depois, no primeiro de maio do mesmo ano, um milhão de pessoas tomavam a ruas de Lisboa para referendar a liberdade desse novo Portugal.

Veio depois a Assembleia Constituinte de 1975, eleita democraticamente. Na sua esteira, nasceu a Constituição de 1976, a nossa terceira lição, atualmente em voga. De fortes alicerces socialistas calcados no bem-estar social, ela é quem lidera o país de fato. Por fim, veio a adesão à União Europeia, da qual Portugal faz parte desde o ano de 1986.

Hoje e desde 2015, o país prospera politicamente por meio de um pacto entre diversos partidos de esquerda, movimento apelidado carinhosamente de geringonça. Ela, a geringonça, surgiu na esteira do declínio oficial da austeridade nociva da Troika, em 2014, que impunha rigorosas sanções fiscais aos países mais frágeis do bloco europeu. A partir desse movimento político, Portugal voltou ao melhor dos seus dias, apesar desses conterem ainda intensos desafios.

Mas, como essa coluna hoje trata de lições, a quarta delas é consequência direta das outras três primeiras. Ou seja: o bem-estar social, o pacto político, governantes líderes e não títeres permitiram a Portugal desgarrar-se  da pandemia por meio de ações coordenadas e elaboradas a partir da ciência e do consenso popular. O distanciamento social, o fechamento de escolas e fronteiras prematuros, entre outras medidas, colocaram o país na vanguarda do combate à  Covid-19, tornando o pequeno país em uma espécie de oásis dentro do olho do furacão.

E para ficarmos ainda na terrinha, como diria José Saramago:

“A única maneira de liquidar o dragão é cortar-lhe a cabeça, aparar-lhe as unhas não serve de nada.”

📸 Dominika Roseclay

Guilherme Romano

Meu nome é Guilherme Frossard Romano. Sou paulistano de coração. Escrevo, fotografo e nas horas vagas administro empresas. Sou formado pela ESPM e tenho predisposição pelo cinema e pela literatura latino-americana. Na minha cabeceira agora descansa comigo o livro: Confesso que vivi, do insuperável Pablo Neruda. Meus vícios, não necessariamente nessa ordem, são um bom café e viajar pelo mundo.