Algumas cidades flertam pela voracidade dos adjetivos. Duas delas, em especial, dividem, além disso, muitas outras histórias em comum. É o caso das solares Lisboa e Salvador que se encontram e se ramificam por vielas, docas, elevadores, igrejas, casarões e as suas curiosas “baixas”. Cada uma resguarda algo de si, bem particular, porém, as semelhanças entre elas são mais que certas.
As pegadas desse flerte são encontradas desde a chegada dos portugueses à Bahia, mas materialidade dessa correlação começa visualmente pelo véu das águas. Tanto lá como cá, debaixo do manto verde azulado, arrecifes ancoram fortalezas que sentinelam as respectivas cidades. A Baixa lisboeta e o estuário do Tejo recebem a constante vigília do Forte do Bugio, palavra adaptada do francês, bougie, devido sua forma em vela. Já quem guarda a Baixa soteropolitana e a formosa Baía de Todos os Santos é o Forte São Marcelo que, segundo Jorge Amado, trataria- se do umbigo da Bahia.
Já com os pés bem fincados em terra firme, vê-se que as Baixas dividem também, entre elas, outras preciosidades, como é o caso dos seus emblemáticos elevadores. Na terrinha, tem-se o elegante Elevador Santa Justa que interliga a Baixa ao Chiado e, na margem de cá, temos o imponente Elevador Lacerda, que comunica as praças do Cairu, na Baixa, à Tomé de Sousa, na Alta. Ambos os “cartões postais” são funcionais e essenciais ao ir e vir entre as opostas altitudes.
As Baixas e, as duas cidades em questão, detêm também outros louros comuns, como suas riquezas espirituais. Salvador é uma cidade que conta com mais de trezentos e sessenta e cinco igrejas. Não há quem não consiga visitar um templo diferente a cada dia. Outro destaque da margem cá, é o sincretismo religioso que encontra seu apogeu na lavagem anual do Bonfim, quando diferentes credos se fundem em um só. Já na Mãe Pátria, entre capelas, conventos e igrejas, Lisboa congrega, pelo menos, mais de setenta templos, tendo o Mosteiro dos Jerônimos como seu ícone maior. Diferente do que ocorre no Brasil, o Catolicismo impera quase como na Idade Média.
Cada orla abraça suas águas à sua maneira e os caminhos, tanto à margem como colina acima, apesar de díspares, guardam entre si uma estreita relação pictórica. Essas semelhanças se dão pelos casarões, eiras, passeios e praças. A arquitetura exótica, revela em si uma das principais singularidades comuns das Baixas – o cotidiano de um só povo, um coletivo informal e casuístico que nasce e morre ali, entre as águas e as colinas. Cotejados entre a brisa e o sol, detêm identidade própria que é excludente às Altas. Pode-se dizer que, apesar de subsistirem em margens opostas, mascates, marinheiros, artesãos, malandros, pescadores, entre outros, formam um só gueto, colorido e profundo, tanto lá como cá.
Esse microcosmo do modo de viver, pensar, rezar e empreender, tão singular entre todos só persiste atualmente por meio de uma linha tênue: a nossa valente língua portuguesa. Tão poderosa e envolvente, que ventila esses costumes a outros sítios e rincões de ambas as pátrias. Ela, de traços tão belos, criou seus pedestais através de titânicos poetas e de colossais escritores: Camões, Pessoa e Saramago lá e, Machado, Amado, Castro Alves e Drummond cá. Singela, do fado ao samba, ela traz, dentro de si, seus caprichos e seus segredos de decassílabos que são capazes de nos fundir e nos unir dentro de um só catavento ancestral revolto de prosas, versos, romances e poemas.
E, ao fim, são só palavras ao vento…
Meu nome é Guilherme Frossard Romano. Sou paulistano de coração. Escrevo, fotografo e nas horas vagas administro empresas. Sou formado pela ESPM e tenho predisposição pelo cinema e pela literatura latino-americana. Na minha cabeceira agora descansa comigo o livro: Confesso que vivi, do insuperável Pablo Neruda. Meus vícios, não necessariamente nessa ordem, são um bom café e viajar pelo mundo.